segunda-feira, maio 22, 2006

1/4 para dormir

Eu não sei dormir, nunca aprendi.

- Vá para casa moça a senhora está com uma cara horrível.

- Que homem cruel, eu jamais diria isso a alguém.

Passar tanto tempo no meu quarto me faz pensar em como eu poderia me apresentar para alguém apenas mostrando este cômodo, empilhado de objetos inúteis que eu não sei como me desfazer, sem espaço apesar de grande, e sem conseguir cumprir com seu propósito inicial. Um cômodo que tem bem pouco sentido de ser. Será que alguém já morreu de insônia, se morreu provavelmente foi de tédio.

Catarina se levantou, pintou a cara e trocou de roupa, com a intenção sincera, de pela manhã, pintar todas as paredes do seu quarto, saiu pela madrugada decidida a fazer somente aquilo que ela nunca havia feito. A moça foi para um bairro que nunca havia estado antes e entrou no bar mais movimentado, ela sentia que podia fazer algo a respeito de não caber em si, a vida não podia ser tão dolorosa, provavelmente ela estava no caminho errado, o que explicava todo o seu desconforto.

- Tá perdida madame?

- Não moço, pelo contrário, posso me sentar?

- Claro. De onde a senhora é?

- Daqui mesmo.

- Acho pouco provável moça, por essas bandas todo mundo se conhece ou pelo menos tem a cara familiar, e uma moça como a senhora, dá pra ver que não é daqui.

- Não senhor, é que eu andei muito tempo sem saber aonde ir, me perdi algumas vezes e acabei ficando insegura para andar sozinha, mas agora já estou acostumada a tudo por aqui.

- Olha moça, bom pra senhora, agora eu tenho que ir, foi um prazer.

- Pra onde o senhor vai?

- Bom, para onde eu vou a senhora provavelmente nunca foi e nem nunca irá se depender de mim.

- Pois é exatamente para onde eu gostaria de ir, o senhor me leva?

- Não senhora.

- Por favor

-Olha moça, o lugar é embaçado, quem entra lá só Deus sabe se sai.

- Por favor, alguma coisa me diz que eu vim aqui, hoje, justamente para este propósito.

- Bom, então vamos logo, a senhora está avisada, é maior e vacinada, né? E se alguma coisa acontecer, eu já te falo dona, não vou poder fazer nada pela senhora.

- Muito obrigada moço, e antes de mais nada meu nome é...

- Nem precisa me falar, a partir de agora a senhora é Madá e eu sou Gabriel.


O lugar, que só Deus sabe se quem entra sai, era uma casa velha, no meio da periferia, sem acabamento com os tijolos a mostra, uma velha abriu a porta para os visitantes entrarem, lá dentro uma grande sala abrigava uma reunião de umbandistas, eles cantavam e dançavam os orixás, pouco a pouco as entidades eram incorporadas pelos “aparelhos” que só eram notados pelo lençol branco colocados em suas costas, mais adiante, depois de uma cozinha grande e cheia de caldeirões espalhados por ela, uma porta fechada.

- Madá, aqui é o lugar, quer mesmo entrar?

- O que tem ai dentro? Perguntou Madá com um jeito divertido

- Nada que tenha a ver com o que você viu na sala. Nada que vá fazer bem a mim ou a você

- Então por que você vai entrar?

- Porque eu preciso, disse Gabriel parecendo honestamente agoniado. Só a trouxe aqui por achar que talvez... você precise também.


Madá já não parecia divertida, ela finalmente percebia a seriedade da situação, pensou em voltar, mas sabia que não poderia. Finalmente abriu-se a porta o que Madá viu parecia enlouquecedor, sentiu náuseas por causa do cheiro forte, um homem a puxou pelo braço com força a deixando sem reação no meio de um monte de gente se contorcendo de dor. Ela viu uma moça sangrando, pensou em tentar ajudar, mas logo percebeu que a menina se feria com uma lâmina. Uma pontada de dor no seu estômago a alertava do perigo de estar ali, ela pensou em se ferir também, tentando evitar que alguém fizesse antes dela, ao se abaixar para pegar uma lâmina, um homem, negro encharcado de uma mistura de suor e sangue sorria para ela mostrando a gengiva, sem dentes e sangrando. Ela engoliu seco e entendeu o recado, naquele lugar cada um teria uma experiência diferente.

Catarina foi recolhida numa praça no centro com os dedos sem unha, ela estava ferida e bastante fraca, a levaram para um hospital aonde permaneceu por duas semanas até se recuperar. De volta ao mundo, a moça foi para casa feliz por constatar que estava disposta a deixar tudo como estava, seu quarto parecia em perfeita harmonia, paredes, móveis, trecos, tudo,finalmente no seu devido lugar.

O bom filho

Desde cedo ouvia seu pai dizer que quando o fim estivesse próximo ele saberia:

- O fim dos dias meu pai?

- Sim

- Então todos saberão pai?

- Não, meu filho, mas você decerto saberá.

João sentia um carinho enorme pelo pai, mas julgava-o culpado por várias decepções em sua vida, ele achava que o velho havia depositado mais credibilidade do que devia nele, mais que expectativas paternais, mais que projeções, o velho era realmente exagerado no que dizia respeito ao filho.

João estava com 30 anos, morava sozinho, tinha um bom trabalho, uma namorada, bons amigos,visitava a mãe com regularidade controlada, caso contrário só visitaria a velha viúva uma vez por ano, o amor que ele sentia pelo pai não era nem de perto igual ao que sentia pela mãe, mais uma vez o exagero do pai havia atrapalhado a sua vida, a mãe sempre se sentiu diminuída perto dos dois. Vários foram os esforços de João para introduzir a mãe às longas conversas que ele tinha com o pai, mas o velho nem se dava conta da presença da esposa.

Com a morte do pai, João não teve alternativa a não ser sair de casa, sua mãe estava se tornando histericamente perfeccionista e exigente em relação a sua vida: “Trate logo de ver um doutorado, seu pai não lhe criou para isso, e essa menina insossa? É sua namorada, não a traga aqui, a insignificância dela ofende a memória de meu marido.Por Deus João ,seu pai não foi um pai comum, não seja assim, não seja ingrato como são todos os filhos.

Ele não culpava a velha, sabia de onde vinha todo rancor. O que ele não sabia era como o pai estava certo. O velho sempre o assustava com aquela conversa sobre: “O fim dos dias meu filho, você decerto saberá, use esse privilégio com carinho, use com amor.”