terça-feira, março 28, 2006

Diassujos

Em cidades muito cheias a ansiedade é uma constante, uma resposta que ameniza a loucura, as pessoas envelhecem, os objetos estragam e são substituídos por outros. Os amantes, o chuveiro, a porta, o ferro, a cafeteira, a geladeira, o porteiro, a TV, o computador. O tempo destrói tudo.

Em cidades como essas a morte perde o sentido real, ela vira tempo de folga ou tempo perdido, tempo cronometrado: três horas de velório, quinze minutos de missa, dez minutos para o enterro, cinco dias de descanso para os filhos, três para os netos. Embora em cidades muito cheias a morte continue sendo uma cusparada na cara, chega na hora que quer, de madrugada ou em pleno horário de almoço, atrapalha o trânsito, atrasa projetos, deixa pessoas esperando.

O relógio da parede da cozinha avisava que já era tempo de ir trabalhar então eu tomei, resignada, meu café gelado, saí com o hálito pegajoso, comprei uma bala, acenei para o senhor dono da banca de revistas, que sempre me avisa quando a PREACHER chega, e tomei o carro de “aluguel.” Não me pergunte a razão, mas eu achei legal falar assim. Então eu tomei o carro de aluguel para chegar pontualmente às 08h00min no trabalho e terminar meus projetos dentro dos prazos. A pessoa que cumpre os prazos sempre recebe uma premiação, e ela não é nada ruim.

Fim do dia no escritório.

Agora é a minha vida social quem exige de mim, vamos todos para o pub mais cheio da cidade, sentir muito calor, ouvir pessoas gritando e tentar conduzir alguns flertes em alguns homens embriagados, cansados, agitados, e tentar ao máximo desacelerar o ritmo que nos é imposto, na verdade não é bem imposto, mas como a premiação é boa a gente não se importa de viver com o pique de um cheirador, produzindo 8 horas por dia, 7 dias na semana. Conversas sobre nada, cheia de palavras rebuscadas, novas ou velhas deixavam o ambiente mais cheio, tudo programado, até o drink que uma moça deve tomar se ela quiser ser “in” (in - um termo descolado terminantemente proibido de se pronunciar se você não quiser denunciar a sua intenção de ser “ “ ... você sabe!)

Fim do dia social


Casa, lugar pouco acolhedor, porém bastante prático. É preciso tempo para familiarizar com o ambiente. A cama é conhecida já o sofá... parece que foi escolhido por um estranho, e de fato foi, eu gostaria de ver a senhora mãe dele sentadinha vendo TV nessa porcaria, desenhado para um camelo se sentir confortável. Mas enfim lar doce lar, é hora de dormir, isso se eu quiser ter no mínimo 6 horas de sono, sendo assim, chapada eu apago e sonho.

O Sonho.

Eu volto ao pub, um homem enfia a mão na calça e balança o membro pra mim eu pego a pinça e morro de rir. Do outro lado uma mulher parece cair, mas permanece em pé, a música é boa, mas não dá para ouvir direito, um homem chora copiosamente no balcão, eu sinto por ele, exposto ali à luz do néon, atrapalhando os pedidos de tequila da moça de rosa, o homem que chorava me leva para casa, num carro de teto baixo, tipo baratinha, as janelas estão fechadas e por isso eu não consigo respirar, mas tenho medo de pedir para abrir, evito chamar a atenção dele para mim, tento desaparecer, não consigo, minhas mãos denunciam minha aflição, o homem segura as minhas mãos que estavam enterradas entre as minhas pernas, ele as aperta entre as dele, em seguida agarra o meu pescoço e sorri dentes amarelados de cigarro e café pra mim. Eu sinto vontade de morrer e acabar logo com aquilo, engolir se tornava penoso.

Eu acordo com a sensação de ter lágrimas para chorar, mas não tenho. Seguro meu pescoço tentando sentir a mão novamente. Suada, eu me sinto infinitamente sozinha e amedrontada, eu rezo para Deus me ajudar, rezo para que ele seja meu pai, me repreendo por não acreditar nisso, tornaria tudo mais fácil, acho graça da idéia de ir a uma igreja, de madrugada, depois do Pub, a única hora que seria concebível a idéia de parar.

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sexta-feira, março 17, 2006

O último adeus de Liana

Seco, o tempo estava seco. Não por causa do sol. Não chovia, não fazia sol.
Naqueles dias escuros só ventava. Liana minha noiva não se abalava com isso.
Eu, Joaquim me sentia mal, bem mal, miúdo, encolhido para ser mais exato.
Mas nada disso importa. Liana tratava de velhos doentes, limpava os doentes e lia para eles, fazia isso todas as tardes. E fazia bem, todos os velhos a adoravam por isso. Mas Liana sempre achava que não fazia o suficiente e por vezes se considerava egoísta por pensar em largá-los. Ela sempre dizia com aquele jeito lamurioso dela de falar:

- Puxa Quinzinho, eu só me permito falar essas coisas para você, pois é vergonhoso.
Mas é que me deixa mesmo angustiada, vê-los definhar, eu sinto pena. E é horrível sentir pena, porém eu não consigo identificar qualquer tipo de dignidade na condição deles, eu não consigo. E nessas horas tudo que passa pela minha cabeça é nunca mais voltar lá, fingir que não existem velhos no mundo e tentar morrer antes dos 60 anos. Estúpida! Isso é o que eu sou, uma puta egoísta e estúpida. É por demais penoso vê-los sorrir tão inocentes, sem dentes e com a pele fina e enrugada. E quanto mais aberto for o sorriso mais explícita é a tristeza que eles trazem. É mortificante receber deles um carinho que obviamente não é por mim. Mas Quinzinho o que mais me faz sentir uma pessoa dura é saber que eu só faço isso por eles por culpa, culpa do asco que eu sinto pela degradação deles. Quinzinho eu os odeio e me odeio por isso. Eles me fazem sentir suja, cada banho que eu dou é uma tentativa inútil de me limpar da minha imundice.

Mil vezes eu disse a Liana que ela só estava sendo honesta, que grande parte das pessoas mundo se sentia da mesma forma em relação a velhice mas que ninguém dizia nada, nem tão pouco fazia. E que ela estava sendo boa por tentar trabalhar uma fraqueza de forma tão positiva. E por vezes funcionava, e por vezes voltavam suas perturbações, embora Liana nunca deixasse de ir todas as tardes ao Hospital do asilo.

Todos os dias depois do almoço eu pegava Liana em sua casa e a deixava com os velhinhos, mas nesse dia ela já tinha saído. Eu estranhei, mas segui para o meu trabalho sem pensar nas razões que fariam a moça mudar nossa rotina. Na verdade eu só pensava bravo na falta de uma ligação que me poupasse o tempo de ir até a sua casa à toa.

O vento gritava do lado de fora da janela, eu sentia falta dela, mal podia esperar a hora de ver Liana. Era confortante o tanto que ela achava romântico aqueles dias sem vida. Mas Liana não voltou para casa. Naquele dia tão pouco ela foi ver os velhos, Liana havia desaparecido. Choveu durante toda a madrugada, toda a gente saiu para procurar Liana, que quase ao amanhecer apareceu, despudoradamente morta, com sua saia levantada e entre as pernas uma carta que tinha instruções para ser publicada no jornal, o que não aconteceu. Segue trechos da carta de Liana:

Eu espero que minha morte seja simbólica, espero que dê coragem a todos para dizer o que realmente são, eu espero que todos me venerem com ódio, que digam, maldita Liana, putinha barata, e admitam no seu íntimo, ela fez o que eu queria ter feito.
Assumo não, declaro aqui que fui suja, bolinava os velhos que só não me estupravam por não terem força e me divertia com isso. Defecava nas senhoras mudas e para o restante contava-lhes todo tipo de bizarrice com pessoas das suas famílias. E me divertia muito com isso, por vezes acertava. Vocês devem se lembrar do caso da menina que era estuprada pelo pai, o pai era filho da Dona Neusa, uma velha muito escrota que eu cuidei até a morte. Coincidentemente, D. Neusa faleceu depois de ouvir a minha história sobre seu filho que chupava a netinha todos os dias na esquina da escola. D. Neusa não agüentou a emoção de escutar tamanha sujeirada sobre o filho, sorte dela que morreu sem saber dos meus poderes premonitórios.
Enfim, morro feliz e mais vazia... vocês, hipócritas, podem imaginar como é duro carregar uma mentira por tanto tempo, eu precisava contar, precisava que toda a gente soubesse. Então, aqui jaz Liana, uma putinha imunda que de tão leve caiu do despenhadeiro sem calcinha.