terça-feira, março 23, 2004

Pára-tudo









Para aquilo que não se disse mas deveria ter sido dito. Um eterno nó
Para o que não devia ser dito mas foi. Uma lingua maior que a boca
Para os que dizem o que deve ser dito. Uma careta
Para os que nada dizem, mesmo tendo muito a dizer. Corda
Para os que dizem muito, mesmo sem ter o que dizer. Ouvidos
Para os que dizem, dizem, dizem e dizem mais ainda. Botão de mute.
Pára tudo. cala-te e escuta.
shiiiiii...



A caridade da faladeira



Vinha gente de todo canto para almoçar na minha casa, e todas as vezes que mãe fazia esses almoços as coisas do dia-a dia aconteciam diferentes, mas diferente igual a todo dia diferente, sabe o que eu tô falando, eu sabia que a rotina seria diferente, mas já conhecia como seria o diferente, assim como o prato especial, eu já sabia qual era também, era pernil com farofa, mas não aquela farofa, uma farofa especial daquelas que tem passas e presunto dentro sabe, pois é, mas o mais legal era a roupa que eu podia usar, só nos dias diferentes, isso era o máximo, eu podia até brincar com aquela roupa chic de ir na missa, só o cabelo que eu não gostava, pois me apertavam tanto o laço que doía a cabeça, eu dizia a minha mãe e ela nunca que afroxava, dizia que se não fosse assim dali um tempo eu estaria igual a uma louca, que mora lá na rua perto de casa, então eu deixava, porque igual a louca eu não queria ficar não, todo mundo corre dela e ela é muito fedorenta, ninguém quer ficar igual a louca, não é verdade, quando você pergunta pra alguém o que ele quer ser quando crescer ninguém responde louca da rua, todo mundo responde, doutor.
Eu também não quero ser doutor, quero ser enfermeira, que eu acho muito mais bonito, ser enfermeira que ser médico, a minha tia era enfermeira, mas ela morreu, minha mãe me disse, com muita raiva, que ela morreu de desgosto que o marido dela que tinha matado ela, mas eu achei estranho, pois ele não foi para cadeia, e quem mata vai para cadeia, eu vi no jornal um homem que foi para a cadeia, ladrão também vai, um dia um ladrão entrou na minha casa, era páscoa e eu tinha ganho uma porção de ovos, você acredita que o esganado do ladrão roubou todos os meus ovos? Ele levou todos, não deixou nada para mim, mas a minha mãe disse, que iam pegar ele e então iam prender ele na cadeia, e disse que lá não tem banheiro, e ele ia ter caganeira num lugar sem banheiro, eu pensei comigo, será que o ladrão me poupou de ter uma terrivel caganeira,eu ia comer todos os ovos que ele comeu, sendo assim por acaso ou não ele não é pessoa tão ruim, acho que eu deveria pelo menos levar um papel higiênico até a cadeia.
Por caridade né.

Maldito acaso




Eu nunca havia pensado que aconteceria assim, de todas as vezes que imaginei essa situação, nunca havia sido da maneira, como de fato aconteceu.
Eu acordei naquele dia, antes da hora programada no despertador, e por isso, tive tempo para pensar um pouco antes de sair, fiquei lá, sentada na beira da cama, pensando abobrinhas. Eu não pensaria na vida, minha vida é corrida e breve, eu poderia me apresentar em poucos segundos, mas é tão sem graça, a minha vida, que eu prefiro poupá- los disso.
Bem, saí de casa para ir trabalhar como de costume, passando pelos mesmos lugares, sem mudar um passo na trajetória, até que sem explicação, levei um banho de água suja, um carro, passando em cima de uma poça, me fez este favor. Ò t i m o, nada pior poderia acontecer na vida de uma pessoa que calcula por minutos as suas ações, como eu faço, o que eu faria? Eu realmente não sabia, não tinha idéia, olhei para o chão e chorei, por horas a fio, eu não poderia ir para o trabalho daquele jeito, eu estava fedendo. Não poderia ir para casa, eu estava humilhada e quanto mais tempo eu ficava parada alí, mais se distanciava de mim a possibilidade de voltar ao curso normal das coisas, a vida simplificada que eu pensava levar, me proporcionava ter controle sobre ela, mas isso eu não contava que aconteceria, já estava anoitecendo e eu continuava lá, chorando e sentada no meio fio, até que me faltaram lágrimas para continuar e eu fiquei lá, agora, olhando as pessoas passando, algumas paravam falavam comigo, outras até me jogavam moedas.
Foi assim que eu passei a ser um ponto de referência, conheço todo mundo que passa, e me divirto com suas distraídas esquisitices, elas, as vezes, falam comigo, me pedem informações.A questão é que eu consegui uma nova rotina, e essa dificilmente será corrompida. Nela me manterei até que o acaso me pegue outra vez.

O Hóspede




Estava frio e ventava muito... de longe podia-se enxergar uma casinha velha, que naquela situação parecia bem aconchegante, ela ficava bem no alto, pensei um pouco antes de me aventurar até lá, pois era uma caminhada que só atrapalharia se eu não pudesse descansar um pouco. Por fim eu fui, chegando lá, bati na porta e uma criança mal encarada me recebeu e gritou para um adulto lá de dentro, - Outro viajante pedindo guarita. Alguns resmungos depois, a criança me mandou entrar e sentar perto da lareira. Pouco tempo depois vieram os cachorros, fedidos e raivosos, ficaram a me vigiar enquanto se aproximava o dono da casa que me olhava com ar superior, ao sentir meu medo diantes das duas betas caninas, aquilo era uma vitória pra ele. Eu tentei brincar com os cachorros e ele gritou: - Ei sujeito não posso crêr que você seja imbecil a esse ponto, mas se quiser continue a brincar com os animais, já faz tempo que eles estão precisando de um pouco de diversão mesmo.
Eu me virei e pedi desculpas e disse que já estava saindo ( já estava cansado daquela hospitalidade toda) e então ele gargalhou alto e disse na minha cara:
Você é um sujeitinho muito burro mesmo, basta você pôr o pé na porta para um urso vir e acabar com você, sendo assim é preferível deixar que os cães o façam.
Eu recuei e perguntei pra ele qual era o problema, pq tinha me deixado entrar se fosse pra demonstrar tamanha hostilidade? E então ele disse:
Eu estou te fazendo um imenso favor, estou salvando sua vida, sem nem conhecer você, como um bom cristão faria, disse olhando para uma velha imagem.
Não reparou que a sua vida está nas minhas mãos??? olha pros lados, quem mais poderia ajuda-lo, ninguém, sabe o vermezinho que abriu a porta? Pois é, estava perdido por aqui, eu ajudei, eu sou uma boa alma, como uma boa alma pode ser hostil. Vá dormir homem e trate de não me incomodar mais com sua ingratidão, vou deixar os cães aqui, fazendo companhia. Deu uma risada e saiu... de novo com aquele olhar de prazer ao sentir o meu pavor .
Então eu tinha uma lareira quase no fim, e cães como companheiros. adormeci, durante o sono, muito barulho, gritos histéricos tudo muito estranho, mas por mais força que eu fizesse, eu não conseguia abrir os olhos, tão pouco me levantar, mas escutava esses ruídos como se estivessem na mesma sala, só não era capaz de abrir os olhos, por mais que eu me esforçasse, para evitar o desespero eu parei de tentar, e assim foi até o amanhecer, quando eu me levantei. Não demorei em me preparar para sair, mas algo me fez voltar, eu ainda deveria agradecer o meu anfitrião, procurei por toda a casa e não vi ninguém, nem sinal do velho ou da criança.
Nas paredes de cima somente uma foto, muito antiga, desgastada, onde constavam o homem, e o moleque que abrira a porta, a aparência das pessoas era de uma época muito distante, o que me surpreendeu um pouco, mas no fundo me senti satisfeito por não ter que agradecer ou despedir-me de ninguém, corri e saí dali o mais rápido que pude, a cada passo me sentia menos sufocado, mais perto da civilização, as cores ficavam mais claras e o cheiro menos inebriante. Aquele era um lugar onde eu jamais poria os pés outra vez , e sobre aquelas pessoas eu nunca mais, sequer, pensaria a respeito novamente.