terça-feira, março 29, 2005

O último café

Hélia rasgou foto por foto do álbum de infância que a mãe, Dona Clara,
conservara até a morte. Catou umas roupas da falecida para ganhar
algum dinheiro no brechó e se queixou por ter sido a mãe tão pouco
vaidosa. Era sexta-feira e fazia frio na cidade, Hélia já tinha trinta
e sete anos, os parentes já não faziam brincadeiras sobre sua
solteirice, na verdade os parentes não faziam brincadeira alguma com
ela. Hélia era afiada como uma navalha e suas reações poderiam ser bem
violentas.

A moça era garçonete, ninguém nunca entendeu como ela conseguiu
arrumar um trabalho desses, ela parecia se dar melhor com cobras que
com pessoas. A lanchonete era no centro, Hélia odiava o lugar e tudo
que se relacionava a ele.

No dia da morte de Dona Clara, Hélia teve a tarde de folga, por causa
do luto. E aproveitou para andar um pouco por perto do cemitério, que
era uma região antiga da cidade, um bairro calmo e bonito.
Hélia andou por horas antes de se sentar num bar para um café. O bar
era do Seu Hamilton. Um senhor realmente muito amável, que exibia com
orgulho uma vasta coleção de canecas de alumínio com emblema de vários
times de futebol. Ficava numa prateleira de madeira, na parede, logo
atrás do balcão onde ele ficava escorado fumando seu cachimbo.

Hélia entrou e pediu o café, Seu Hamilton, logo perguntou o que ela
estava fazendo por aquelas bandas, se vinha do cemitério. Hélia
respondeu que sim, sem vontade, catou o café e sentou-se a mesa com
uma jornal de ontem que estava espalhado sobre ela. Seu Hamilton não
se fez de rogado, sentou-se na mesa com Hélia e deu inicío a uma
conversa amistosa com a moça:

Sabe filha, eu tenho esse butequim aqui a mais de vinte anos, no mesmo
lugar! Acompanhei muitas crianças virarem adolescentes bagunceiros e
então doutores. Já ví e ouvi muita coisa, filha. Principalmente de
gente saída do cemitério sabe. Tem muita gente sozinha nesse mundo.
Você me entende?

Hélia sorriu sem paciência e continuou a passar os olhos pelo jornal.

Seu Hamilton não era homem de desistir fácil, sua função alí no bar ia
muito além de atender as pessoas, ele as ouvia sempre e não poderia
ceder diante de uma pessoa claramente necessitada.

Minha filha... disse Seu Hamilton abrindo os braços e sorrindo com os olhos
Desabafa! bota para fora toda a sua tristeza.

Hélia que já estava farta de toda a choradeira e lamentos pouco
convincentes dos familiares, deu uma gargalhada que mais parecia um latido, e disse
para o velho:

Meu senhor, o senhor não é meu pai então pare de me chamar de minha
filha, EU, lamento muito que o senhor tenha passado vinte anos da sua
vida inútil, dentro desse buraco fedido vendo os outros prosperar, sem
sair do lugar. O enterro que estou vindo é da minha mãe, uma mulher
fudida que nunca fez nada nessa vida além de se lamentar por ter se
casado e tido filhos perdedores com um homem vagabundo e picareta, o
senhor meu pai, que o diabo o carregue!!!! Portanto eu só estou
cansada de toda a trabalheira que dá enterrar uma pessoa e só queria
aproveitar um pouco a folga que me foi dada por razão da morte da
velha.

Agora dá licença! que eu..

Blam!!!

Seu Hamilton é realmente um senhor muito amável, mas ele não gosta de
ingratidão, e tem acesso irrestrito ao cemitério. Agora Hélia jáz
junto com sua mãe, Dona Clara, que recebe semanalmente, assim como
mais de vinte pessoas, rosas vermelhas de Seu Hamilton.

3 comentários:

Anônimo disse...

Que triste Mirita! Me lembrei do seu comentário quando assistiu e detestou aquele Sobre Meninos e Lobos, que eu confesso que gostei, e que você reclamou do excesso de niilismo. Você e sua mania de ler os filmes e que agora te inspiram a escrever, indiretamente, claro.
Te liguei várias vezes durante a semana santa até descobrir que você tinha viajado. Queria ter ido à Obra. Fica pra próxima.
Bjo procê.

Luiz Augusto disse...

Quero mais contos!!!! Atualização!!! Beijão!

Mirian Silveira disse...

Aposto que esse anônimo aí é o Thiago!
Bem respondendo o que não foi perguntado... segue a linha sim, mas aquele filme ainda é ruim!
Bjokas
Mirian